epílogo
Não me peçam para escrever um conto quando apenas posso tratar do epílogo. O conto conta-se a ele mesmo, sem palavras, mas com actos e omissões. Por minha mágoa, minha tão grande mágoa. E peço à literatura, aos anjos e santos e a vós leitores que rogueis por mim a ela, agora e para sempre também.
Os olhos comem. Espelhos da alma, os olhos antecipam aromas e no altar do desejo devoram pedacinhos de vazio na esperança de saciarem o corpo. O belo é democrático, dizem. Perto ou longe, qualquer um lhe chega se abrir os olhos e souber ver. Dizem que naqueles tempos - como nestes - as igrejas barrocas ofereciam o belo ao pobre que ali tirava a barriga da miséria, ainda que a miséria endémica lhe tivesse cortado as asas para poder voar rumo ao paraíso ou aos campos elísios de ambrósia e néctar que curam das canseiras e fortalecem o espírito.
A todo o momento se reescreve a história alternativa do belo. Por isso, comer com os olhos pode ser uma invasão da privacidade e, nesse caso, deve ser punida nos termos de uma lei da harmonia universalmente individual. Enquanto propriedade particular, o belo vive aprisionado num palácio de seda em que só um tem o direito a tocar. Com os olhos, com as mãos e com a língua. E o branqueamento da lei contra a inveja, a cobiça e a gula abre uma caixa de Pandora de consequências infernais.
Dentro deste epílogo, sem vos nomear, está o meu bolo de chocolate e tu. Se dei a provar o bolo de chocolate e me deleitei com as apreciações de sabor e textura, sinto muito viva a dor aguda do ciúme quando soube que foste provado. Tu e o meu bolo de chocolate foram meus. O bolo foi democrático, assim o determinei. Tu não. Porque te pus no altar da alma, e não na igreja barroca. Porque te lavei os pés e os sequei com os meus cabelos, e te perfumei com jasmim e chamei-te meu amor, meu tão grande amor. Porque te pedi em silêncio que me levasses ao paraíso, aos montes elísios, e que os descêssemos felizes de mãos dadas, e que depois partilhássemos o bolo de chocolate com os amigos.
Tema do desafio lançado: Tu e o meu bolo de chocolate/
19 de Março de 2010
Há 3 anos