quarta-feira, 10 de junho de 2009



o vermelho e o verde




As técnicas da escrita criativa aconselham a que se faça um plano quando se quer contar qualquer coisa. Um princípio, um meio e um fim, não necessariamente por esta ordem, devem estar clarificados nesse plano. A partir daí, como se de uma tábua de salvação se tratasse, o escritor criativo pode dar azo à sua imaginação, escolher o local e o tempo, as personagens e o narrador, e vogar rumo ao mar ignoto que cada ADN transporta dentro de si.
Para estimular a escrita criativa escolhe-se um tema ou um estado de espírito sobre o qual se traça uma linha recta ou curva. Os bons criativos esboçam-na circular, mas escondem-na em bosques ou cidades, debaixo de riachos, seixos e arbustos, dentro das casas, nas antenas parabólicas ou em qualquer ponte que una de facto duas margens, para que alcance mais brilho e permaneça na pós-memória de quem a seguiu.
O problema surge quando há muitos temas e um estado de espírito, ou um tema para muitos estados de espírito. Antes que a tecla delete exerça a sua soberana autoridade e me afaste mais um dia do blogue que criei há mais ou menos um ano, propondo-me dizer o tudo que sei sobre nada, ou o nada que sei sobre tudo, estendo uma toalha vermelha e verde à beira-tarde aproveitando o súbito sossego que camões me oferece sem exigir nada em troca, como só os génios o sabem fazer
Sobre a toalha derramo um verso, o único que guardei da feira chuvosa dos livros tristes, protegidos por plásticos na praça nova ou avenida ou coisa assim dos aliados. O verso é de joão luís barreto guimarães,não o sei citar digo-o em discurso indirecto, diz que o corpo é a tara perdida da alma. Ah! gostei mesmo deste verso. Trouxe-o comigo, juntamente com os livros que comprei ao quilo sob o olhar sorridente daquelas duas mulheres que pensavam não haver gente doida que escolhesse a chuva para sair a comprar livros, e quero aquele, mais aquele, e este, mais este. Já então tinha o verso nos olhos e via as mulheres através dele, via-me através dele, não me pesava, protegia-me da chuva, tornava mais nítido o conteúdo dos livros que aconchegava junto ao coração, sem ainda lhes conhecer o plano que qualquer teoria tipifica mas que nenhuma leitura substitiu à minha, à de cada um.
Entro no café guarani. Estrangeiros enchem as mesas com o chá servido na elegância dos silêncios enquanto lá fora os pneus dos carros fritam no empedrado assim que o sinal verde o permite. Olho os trópicos painéis coloridos que me transportam momentaneamente para perto de ti que me abandonaste há muito. Queres lá saber. Nunca estiveste ali. Fui eu que te levei lá. Ontem.
Observo melhor os estrangeiros. Não é só chá que vejo a ser servido. Há longos copos de vinho tinto bebericado ao ritmo da leitura de mapas e guias turísticos. Vultos abrigados pelos guarda-chuvas riscam as vidraças sem que a minha alma se agite. Como estou viva e escrevo, sei que o meu corpo ainda não é uma tara perdida, mas não sei se escolhi um tema ou um estado de espírito, não sei se tracei uma linha, ou se fiz apenas alguns riscos tortos.

Se este texto fosse um quadro atravessava-o com uma faca como em tempos vi ana hatherley, a mesma que foi hoje condecorada pelo presidente da república, trespassar amplas telas numa exposição momentânea e ao vivo da arte moderna. Mas é uma toalha sobre a qual ponho livros e um verso, uma opção nada estranha de matar a fome. Se não chovesse levaria uma taça de cerejas para debaixo da árvore da minha infância e lá as saborearia porque as cerejas também fazem bem à alma.



3 comentários:

  1. VASILHAME


    Paredes-meias com o muro onde jaz
    o contentor
    cheio de vidros vazios que
    a queda torna iguais
    ergue-se
    um cipreste esguio que
    anuncia o jardim
    onde eles lançam os corpos –
    a tara perdida da alma.


    in "A Parte pelo Todo" (2009)

    ResponderEliminar
  2. livros e cerejas, comem-se uns a seguir aos outros...

    bjs.

    ResponderEliminar
  3. "o chá servido na elegância dos silêncios"
    "os pneus dos carros fritam no empedrado assim que o sinal verde o permite"
    "debaixo da árvore da minha infância"
    "aproveitando o súbito sossego que camões me oferece sem exigir nada em troca, como só os génios o sabem fazer"

    Clarinda, é essa forma de escrita, nos exemplos que destaquei, que encantam. É bom voltar aqui. Beijos :)

    ResponderEliminar

Arquivo do blogue