segunda-feira, 16 de junho de 2008

proposição



Rios, cidades, acontecimentos, canções, filmes, planetas, deus. São estas as sete etiquetas que utilizarei para arrumar a nova casa. O espaço que cada uma delas ocupar pouco importa, a casa é infinita e há sempre o sótão e a cave para o que não for preciso. Passo a explicar esta ordenação.

O rio é o desenho aquático que mais se aproxima do ser humano pelo fluir da água em direcção ao mar, mesmo que precise de outro rio para atingir o seu fim. Nem a lagoa, nem o próprio oceano se parecem melhor com cada um de nós. Mas não só por isso, um rio pressupõe sempre uma ponte. Precisamos de pontes que nos abracem as margens e nos provem que não estamos só a caminho das estrelas, romanticamente falando, mas sobretudo e principalmente no caminho de quem amamos. E que esse caminho fica mais fácil e mais seguro justamente porque existimos. Um rio só se cumpre plenamente se tiver uma, algumas ou muitas pontes. Mas não falarei só de rios aqui. Os lagos, as enseadas, as orlas marítimas, as águas profundas e límpidas dos prospectos de férias, os charcos e a lama também se enquadram bem neste separador.

A cidade é obrigatória em qualquer casa que se preze. Que seja uma janela aberta, uma fotografia, uma reprodução de um quadro famoso, menos famoso, desconhecido, há-de haver sempre um grupo de pertença, real ou imaginário. Uma cidade faz parte do currículo de cada um e mesmo que conheçamos muitas e que nos identifiquemos como cidadãos berlinenses – para lembrar kennedy – se vivermos em qualquer uma delas, haverá sempre uma reminiscência, um código de barras, um som que nos prende à cidade primeira. Falarei da minha, da outra minha durante sete anos, das cidades onde estive uma semana, um dia, uma horas. Serão ruas, casas, igrejas, museus, jardins. Dias incertos, apáticos, ou decisivos. E manhãs, tardes, noites, madrugadas. Sol ou chuva, vento ou nevoeiro. Serei guia sem roteiro estabelecido e sem preocupação de rigor factual.

O acontecimento reservo-o para a história e a literatura propriamente ditas. A história do passado e do presente, anularei o tempo sempre que as personagens me pedirem. Retirarei frases dos jornais, do rodapé dos noticiários, dos debates, das mesas quadraturas do círculo, dos anúncios, dos blogues. Não reflectirei o efeito imediato que me provocam as políticas imediatas da união europeia, do governo e da pelicana, mas confirmarei aprendizagens, chamarei autoridades, arranjarei exemplos, aduzirei conclusões. Deixarei que sebastião, henrique e filipe passeiem por aqui e, com eles, os de antes e depois de alcácer quibir. Não comemorarei datas de nascimento e morte. O que contar será reflexo de tudo o que li e não esqueci; do que amei e não esqueci; do que quis esquecer e não consegui.

Escolhi o nome canção para este separador porque me parece mais objectivo. É corrente ouvir de alguém a associação entre uma canção e um determinado episódio da vida, bom ou mau. No fundo, disfarçarei na canção o momento caloroso ou frio. Guardarei aí um amor, uma vitória, uma alegria, um sonho concretizado, mas também um desacerto, um engano, uma desculpa, um lamento, uma desilusão. Entalarei pedaços de canções no que escrever dentro deste separador, lembrando ernest hemingway e por quem os sinos dobram, ou jorge amado e mar morto. E, com clara nunes, entoarei as últimas palavras da canção é doce morrer no mar, mesmo sabendo que a sua morte foi num hospital do rio, vítima de um grosseiro erro, numa operação, em princípio, facílima.

O separador filme nem precisa de muitas palavras. Filmes há muitos, como chapéus, já dizia vasco santana. Por isso não falarei directamente dos filmes que vi e me emocionaram. Mas não sei o que vou guardar aqui dentro. Talvez os cenários imaginados para a route 66, ou a rota da seda. Ou então cenas repetidas, interrompidas, filmadas do ângulo errado, com muita ou pouca luz, grandes planos, close-up, travellings, indicações cénicas, rascunhos, cansaços, demoras, palavras mal pronunciadas, frases sem entoação ou com entoação exagerada, tiques e ademanes, descrições pormenorizadas, a árvore estilizada, o barco, a parede com o quadro futurista, as tintas, as canetas e as folhas amassadas, a saia, a blusa, as sandálias, a cadeira, a máquina de filmar, a palavra fim.

No planeta ficarão registadas as divagações à volta de um tema. Pedirei aos deuses gregos, romanos, nórdicos, orientais, ocidentais, ancestrais, novos, noviíssimos, que se sentem à mesa redonda e que bebam, não em malga que esconda mas em cálices de cristal, o néctar da sabedoria. Registarei em pequenas notas as frases mais brilhantes, os aforismos, as sentenças. Calar-me-ei enquanto apuram as análises ecdóticas, linguísticas, estilísticas e estéticas e olharei o céu sabendo que não sou a única, mesmo que a canção não o tivesse lembrado.

Chegarei assim a deus. Se deus é tudo, pode também ser um separador, desde que todos os outros separadores sejam um caminho para ele. Um caminho com dois sentidos, entenda-se. Penso que não serão um caminho, por culpa minha, mas não sei também o que serão. Não vou discutir religiões, nem cruzadas antigas ou modernas, nem guerras santas. Não vou discutir se deus existe, se não existe. Falarei dos místicos e dos ascetas, das cisões e da inquisição, dos mosteiros, dos santos, da espiritualidade, do silêncio. Neste separador deixarei traços da dissertação que estou a preparar, alguns apenas que me pareçam interessantes a quem aqui aportar.


imagem: pontes maria pia e são joão, porto

5 comentários:

  1. vamos, então, embarcar nessa viagem, contigo ao leme:)

    bjs., clarinda

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  2. Eu irei aportar aqui muito mais vezes. Se a "água viva" deixa saudades, renasce aqui um espaço que antevejo cada vez mais promissor. Vicio-me a cada palavra que vou lendo, e não sou de elogios gratuitos :)
    Beijos

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  3. Duarte,

    Vamos lá ver se não desiludo. Obrigada pela tua fidelidade à minha escrita.

    Beijinhos

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  4. Uau!
    Mas que blog poético!
    Bela surpresa!

    Força Clarinda!

    macaca

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