
um gorro há-de ficar-nos bem*
Devo deixar aqui uma palavra, breve que seja, sobre um livro que se apoderou do meu espírito ainda não natalício. Um facto verídico, uma escrita densa à volta de uma estranha e intensa relação a que se vai sobrepor a realidade a preto e branco dos anos 41/43, derradeiros da vida de etty, uma holandesa paredes meias com anne frank no que a diários e vivências diz respeito.
A partir da página 237, com aquela viagem de graça “ a sério, de graça” em que não podem fazer-se acompanhar de animais e que deviam levar sapatos de trabalho, mais dois pares de meias e uma colher, o ambiente opressivo e asfixiante começa a agigantar-se e a entrar-lhe pela escrita dentro, a ela que tanto se preparou para enfrentar tudo aquilo, que procurava compreender-se nos outros e ajudá-los sempre com um sorriso nos lábios e a explicação da vida através da aceitação da realidade e da fruição da beleza escondida nas pequenas coisas e nos gestos mais banais.
De tal forma o círculo se aperta em torno de si que nos tem de dar conta da necessidade de ir ao dentista uma última vez, porque ir ao dentista é uma das coisas que uma pessoa vai adiando uma vida inteira e que por fim tem de ser feita urgentemente, diz ela. Neste momento do livro apercebo-me da elegância com que etty nos afasta do grotesco de tudo aquilo ao mesmo tempo que traça com precisão o ambiente inqualificável de desprezo pela vida humana que a solução final configurou. E então, diz ela, que uma noite sonhou que tinha de ter a mala pronta e que ficou muito nervosa, sobretudo porque os sapatos aleijavam-lhe os pés e que não sabia o que fazer e que a mala era pequena de mais para lá meter a roupa interior, os cobertores e comida para três dias. Céus, o sonho foi real, muito real para ela e milhões de outros.
De tal forma o círculo se aperta em torno de si que nos tem de dar conta da necessidade de ir ao dentista uma última vez, porque ir ao dentista é uma das coisas que uma pessoa vai adiando uma vida inteira e que por fim tem de ser feita urgentemente, diz ela. Neste momento do livro apercebo-me da elegância com que etty nos afasta do grotesco de tudo aquilo ao mesmo tempo que traça com precisão o ambiente inqualificável de desprezo pela vida humana que a solução final configurou. E então, diz ela, que uma noite sonhou que tinha de ter a mala pronta e que ficou muito nervosa, sobretudo porque os sapatos aleijavam-lhe os pés e que não sabia o que fazer e que a mala era pequena de mais para lá meter a roupa interior, os cobertores e comida para três dias. Céus, o sonho foi real, muito real para ela e milhões de outros.
E quem se lembra do ruanda e burundi, aqueles cadáveres na água, e srebrenica e as crianças da palestina cujos pais morrem de dor por não terem conseguido protegê-las com os seus próprios corpos, parece que aquela tragédia a preto e branco foi um filme. E não é um filme, como este livro não é um livro e etty está aqui a lembrar que em qualquer cantinho da mala há-de haver lugar para a bíblia. E já agora, diz ela, para o livro de horas e as cartas a um jovem poeta do rilke.
* Etty Hillesum, Diário, Assírio e Alvim
Chego aqui a partir do seu post de hoje no Leitura Partilhada, blogue que comecei a seguir há alguns dias sem todavia nele participar. Não é talvez muito importante, neste mundo vertiginoso da blogosfera, enunciar grandes reflexões sobre comentários ocasionais de leitura. No entanto, não quero deixar de lhe manifestar quanto me sensibilizou este seu texto sobre Etty Hillesum, tanto mais quanto na estranha circunstância de assim ver associadas duas realidades tão distintas e tão perversamente relacionadas pelo acaso como a de Hamsun e a de Hillesum. E tudo isto apesar dos vários alibis da coisa literária.
ResponderEliminaralberto (pseudónimo, claro)
olá, alberto, obrigada pelo seu comentário. Parei algum tempo a leitura de Hamsun, de tal forma Hillesum me prendeu.É verdade, como realidades, à primeira vista, diferentes servem de pano de fundo à mesma luta interior.
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